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  • Terça-feira, 22 de março de 2005

    Dois futuros possíveis

    Segunda-feira, seis e meia da manhã. Marília caminha apressada para o metrô, tentando não pensar na prova de reologia que terá de enfrentar em exatamente uma hora. Talvez no trem consiga dormir alguns minutos, já que a noite foi à base de café e livros.

    Marília sabe que não é só mais uma prova. Se não conseguir responder corretamente pelo menos oitenta por cento das perguntas, será reprovada na matéria. E caso seja reprovada nessa matéria, não só sua graduação será atrasada em um ano, como também perderá o benefício da bolsa de estudos.

    Não demora muito tempo até que Marília extrapole seus pensamentos e imagine o impacto que uma simples prova da faculdade pode exercer em sua vida. Se tirar oito na prova, continua na faculdade. Vai se formar, tornar-se uma profissional graduada e conseguir um emprego decente. Vai progredir na carreira, quem sabe chegar a um posto de chefia ou quem sabe diretoria. Vai comprar uma casinha, casar, ter filhos, pagar uma boa escola, remédios, inglês, computação. E talvez daqui a 30 anos seus filhos não tenham que tirar oito na prova de reologia para manter a bolsa de estudos.

    Mas a imaginação é muito mais fértil quando se trata de imaginar o fracasso. Nota baixa na prova, fim da bolsa e expulsão da faculdade por falta de pagamentos. Vai ter que arrumar um emprego como secretária, quando muito balconista de loja de shopping. Mas pra quem tem a pele daquela cor, tudo fica mais difícil. Vai acabar virando faxineira, morando pra lá da periferia em um barraco alugado, apanhando de um marido bêbado e desempregado, enquanto vê seus filhos pedindo esmola nos faróis do centro. E Marília não quer pros filhos a infância que viveu. Tem que tirar oito na prova.

    Seis e quarenta e oito. Marília entra no metrô lotado, encosta-se em uma barra de sustentação e apaga. Sete e doze, Estação Anhangabaú, Marília acorda. O sono foi pesado, e insuficiente. Em quatro minutos desce do trem, atravessa a plataforma, passa pelas catracas, e sai da estação. Sete e dezesseis, faltam quatorze minutos para o início da prova. São oito de caminhada até a entrada da faculdade, três para chegar na sala de aula, e ainda sobram três minutos de folga.

    No caminho entre a estação de metrô e a faculdade, sete mendigos deitados na calçada jogam na cara de Marília um futuro que, se não é o mais provável, não deixa de ser impossível. A cada indigente jogado no chão, uma pontada de dor na barriga. O nervosismo aumenta a cada passo dado, a cada minuto transcorrido.

    Sete e vinte e quatro, Marília entra na faculdade. O silêncio no saguão de entrada indica que ela não é a única aluna preocupada com a prova que começa em pouco mais de cinco minutos. Sobe as escadas lentamente, tentando controlar a ansiedade. Tem vontade de correr, chegar logo à sala, fazer a prova e acabar com isso de uma vez. Mas os ponteiros do relógio não compartilham do seu estado de nervosismo, e seguem se movendo de segundo em segundo, minuto em minuto.

    Sete e vinte e sete, já na porta da sala Marília toma um gole de água, guarda a garrafa na bolsa e passa pela porta. Sete e vinte e oito, Marília senta em sua cadeira e reza. Pede a Deus que reserve a ela o futuro mais límpido e tranqüilo. Sete e vinte e nove, termina a oração e fica por mais um minuto olhando para os lados enquanto o examinador distribui as provas. Marília recebe sua prova e espera a autorização para começar.

    Sete e trinta, soa a campainha. A partir desse instante, Marília tem exatos quarenta e cinco minutos para decidir entre dois futuros tão distintos, e ainda assim tão reais.



    Terça-feira, 01 de março de 2005


    Micro-conto: flor


    Pai e filho caminham. Encantado com a beleza de uma flor roxa, o pai lamenta não saber seu nome: “Isso debaixo dos nossos pés é asfalto. A gente sabe não só o nome, mas também como e do que é feito. E não sabemos o nome de uma flor”.

    Ao que o filho retruca: “Ao menos ainda não perdemos a capacidade de vê-la”.