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  • Terça-feira, 30 de novembro de 2004


    O contador de cachorros


    De todos os vícios conhecidos e catalogados, o de Leandro, se não era o mais estranho, não deixava de ser incomum. Nada de álcool, cigarro ou drogas. Muito menos colecionar selos ou fazer bolinhas de catota de nariz. Leandro gostava mesmo era de contar cachorros.

    Leandro começou cedo, assim como todos os viciados profissionais. Foi aos onze anos, numa noite de quarta-feira. Era um dia 13 de outubro, e assim sendo, apenas três dias antes de seu décimo segundo aniversário. E foi justamente nesse ano que Leandrinho, como era chamado pelos pais, decidiu que queria ganhar um cachorrinho de presente.

    Muitos eram os motivos que impediam Leandro de ter um cachorro. O maior deles era morar em apartamento, sítio já pouco indicado para moradia de seres humanos, quem dirá de animais de estimação. E por essa principal razão, os pais de Leandro negaram veementemente o pedido. A cena se deu dentro do carro, quando quase desistindo de insistir, o mancebo teve a genial idéia de contar todos os cachorrinhos que botasse os olhos, só para irritar os pais. Olha lá um. Ih, olha aquele outro, dois. Tem um marrom perto da lixeira, três. E por aí afora.

    O que ele não imaginou e nem poderia imaginar naquele momento, do alto da sabedoria de um pré-adolescente vivendo a fronteira dos onze para os doze anos, é que isso iria se transformar em um vício incurável que o seguiria por toda sua vida. E só naquele primeiro dia, logo depois de ter concebido a estratégia, no caminho de volta do supermercado, contou treze cães. Seus pais não se deram por vencidos, e apesar da chateação que era ouvir o filho contar cachorros por todos os lados, mantiveram a proibição.

    Com o passar do tempo, decidiu aprimorar sua contagem. Passou a catalogar por raças, cores e sexo. Se eram adultos ou filhotes. Criou sub-categorias para vira-latas, cães policiais. Separou os livres dos encoleirados e os reprodutivos dos castrados. Fosse bibliotecário, seria um funcionário exemplar. Mas como decidiu ser arquiteto quando da chegada do vestibular, sua mania não adquiriu contornos práticos.

    Aos vinte e três anos, quando finalmente se mudou da casa dos pais, estava livre para ter o tão sonhado cachorrinho. Mas achou melhor deixar pra lá, já que perderia muito tempo cuidando de um animal que só poderia contar uma vez. Melhor guardar seu tempo livre pra contar outros cães que não o seu.

    Seu programa favorito nos fins de semana era viajar para o interior. Pegava o carro e ia em direção ao campo, contando cachorros na estrada (inclusive os atropelados, que já tinham categoria própria) até se decidir por uma cidade qualquer. Itu, Sorocaba, São José dos Campos, Jundiaí, Registro. Leandro rodou o interior paulista contando, registrando e catalogando todos os cães que cruzassem seu caminho.

    Durante as férias podia fazer viagens mais longas. Natal, Recife, Campo Grande, Brasília e Florianópolis. Contou cachorros no carnaval de Salvador e no desfile dos blocos de Paritins. Visitou Paris, Londres, Miami e Havana, e voltava sempre satisfeito, com um caderninho de notas que não mostrava a ninguém, mas que todos sabiam que iria alimentar o já enorme banco de dados em seu computador.

    O grande erro de Leandro foi a ir à Ásia. Não teve problemas em Tóquio nem Osaka, onde contou cachorros tranquilamente, apesar do fuso-horário e do idioma estranho. Seul não tinha nada demais, mas Pequim foi sua ruína. Ao sair de um jantar, perguntou ao guia o que era o prato tão saboroso que havia degustado. Ao ouvir a resposta, não teve dúvidas. Daquele dia em diante, não contaria mais nenhum cachorro.

    Poucos meses depois, caiu doente e faleceu. De câncer, dizem os maldosos. De desgosto, dizem os mais chegados. E pelo que se comentou em seu velório, ninguém nunca soube dizer quantos cachorros ele contou em sua vida.