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  • Terça-feira, 21 de dezembro de 2004

    Suicídio

    Passou os últimos dias pensando na vida: abandonado pela mulher, sem emprego, nenhuma expectativa. Estava decidido, iria se matar. O suicídio parecia ser a única esperança, já que não tinha família, não tinha amigos, não tinha emprego, o dinheiro se esgotara e sua única companhia, uma garrafa de cachaça, estava vazia.

    Suicídio, estava decidido. Utilizando a lógica irrefutável de todo suicida, dizia para si mesmo que a morte não poderia ser pior que a vida que levava. Tentou lembrar-se de alguns casos que conhecia. Um homem que se atirou do décimo andar, caiu, não morreu e ficou tetraplégico, o que não permitia sequer uma segunda tentativa. Achou arriscado demais tentar, até porque morava no terceiro andar, altura que não considerava suficiente.

    Lembrou-se então da mulher que matou o filho, deu um tiro na própria testa e não morreu, já que a bala ficou presa no crânio. Começou a pensar no quanto era trabalhoso acabar com a própria vida, como poderia ser a morte mais difícil que a vida miserável que o acompanhava? Mas estava certo: se mataria.

    Envenenado. Não há melhor maneira de morrer, pensou. Não faria sujeira nem barulho e melhor, não sentiria dor. Seria assim: Após o jantar, tomaria um cálice de veneno e morreria como Sócrates. Mas percebeu que não havia comida alguma em casa, quanto mais veneno. Decidiu então que iria até a farmácia mais próxima e compraria o tal veneno. Dali seguiria para o mercado para comprar alguma comida e uma garrafa nova de cachaça. Passaria em alguma loja para comprar um terno, não poderia ser encontrado tão mal vestido, e assim já estaria pronto para o enterro, se é que teria um. Ao voltar para casa, comeria como nunca comeu, tragaria um gole da sua cachaça e então encontrar-se-ia com a morte. Não sabia se iria para o céu ou para o inferno, não sabia sequer se iria para algum lugar. Será que existe o inferno? Melhor não pensar nisso, considerou.

    Sentia-se feliz com o seu plano, nada podia dar errado. Finalmente se veria livre desta desgraça que chamam vida. Quis morrer quando lembrou um dos motivos pelo qual queria se matar: não tinha dinheiro. Seu mundo desabou, e sentiu-se medíocre por não ter capacidade sequer para acabar com a própria vida. Mas não desistiria assim tão fácil, acharia outro meio de encontrar a morte.

    Iria se enforcar, como não tinha pensado nisso antes? Era tão óbvio, mas ao mesmo tempo tão complexo. Onde diabos poderia encontrar uma corda? Não se recordava de ter visto alguma em casa, mas algum vizinho havia de ter uma maldita corda. Tentou os vizinhos do terceiro, do segundo e do primeiro andar, e nada.

    Por um segundo chegou a pensar em desistir, mas não podia. A vida lhe era tão dura que nem mesmo esses contratempos o impediriam de morrer. Nada nem ninguém o faria. Desceu até a portaria, onde encontrou o zelador. Pediu-lhe uma corda. O encarregado de manter a ordem no prédio e atender os condôminos sempre que fosse possível não fez nenhuma pergunta e voltou rapidamente com o que lhe foi pedido.

    Ficou tão feliz quanto é possível para alguém que iria se matar e voltou para o seu apartamento. Dirigiu-se para o banheiro e pendurou-se no chuveiro para certificar-se de que o mesmo aguentaria o peso de seu corpo. Amarrou a corda, fez um laço e colocou sua cabeça dentro dele. Tirou-a. Pensou em deixar uma carta ou simples bilhete como fazem os suicidas, mas resolveu deixar de lado essa idéia, já que não tinha a quem dar explicações ou apenas dizer adeus.

    Subiu no banquinho que estava embaixo do chuveiro e colocou o laço no pescoço mais uma vez, e sem titubear pulou para a morte. Sentiu uma enorme pressão na garganta, sua vista se escureceu, podia sentir seus membros se contorcendo, a vida dando espaço para a morte, até que ouviu um enorme barulho e desfaleceu.

    Três minutos foi tempo suficiente para que acordasse e tomasse consciência do que o destino tinha lhe aprontado. Estava caído no chão, a corda no pescoço, o chuveiro ao seu lado. Ou seja, estava vivo.

    Levantou-se, foi para a janela e ficou a contemplar o movimento na rua. Aquela convicção quanto à idéia de morrrer havia desaparecido. Chegou à conclusão de que não era chegada sua hora, e mesmo que tentasse novamente, estava certo que não teria sucesso.

    Resolveu então viver novamente. Decidiu que no dia seguinte sairia para procurar emprego, conseguiria algum dinheiro e começaria uma nova vida. Devolveu a corda, consertou o chuveiro e comeu a pouca comida que restava na geladeira, que não foi suficiente para matar-lhe a fome. Foi dormir.

    Acordou na manhã seguinte cheio de esperanças. Tomou um banho, se arrumou, fez a barba e saiu disposto a conseguir um emprego. Entrou no elevador, saiu do elevador, cumprimentou o zelador, o porteiro, e o mundo já não parecia mais tão negro, nem a vida tão ruim.

    Saiu para a rua com a cabeça cheia de sonhos e o coração cheio de esperança. Fantasiava sua vida nova, um emprego, dinheiro, quem sabe até uma companheira. Atravessou a rua, imaginando-se dentro de um escritório, trabalhando novamente. Seus sonhos não permitiram que ele ouvisse a buzina do caminhão que passava.

    Morreu atropelado.




    Terça-feira, 14 de dezembro de 2004

    O princípio da vida


    Aos vinte e dois anos de idade, Clara ainda tinha dúvidas com relação à sua maturidade. Certamente não era uma criança, tampouco uma adolescente. Mas em hipótese nenhuma sentia-se adulta. Para todos os problemas cotidianos podia contar com seus pais. Conta do celular, seguro do carro, casa, comida e roupa lavada.

    Desde pequena ouvia a mesma ladainha. “Você precisa estudar, tem que se preparar para quando for adulta. Quando sua vida começar de verdade, você vai ter que estar preparada”. Sentia-se como se toda sua existência até então não passasse de um treinamento para a vida real. O difícil era saber quando essa tal de vida começaria.

    “Será que minha vida começou e eu nem percebi?”, perguntou-se Clara, sentada dentro do carro parado no estacionamento da faculdade, com um envelope branco, ainda perfeitamente lacrado na mão. Abriu o envelope. Positivo, dizia o exame.

    Pela primeira vez em toda sua vida, sentiu-se absolutamente solitária. Naquele momento, nenhuma outra pessoa no mundo poderia entender o que ela estava sentindo, muito menos poderia ajuda-la. Não importa o que as outras pessoas dissessem, seria ela, ninguém mais, a tomar a decisão.

    Começou por analisar todas as consequências do que acabara de descobrir. Antes de mais nada teria que contar aos pais, e em seguida, ao namorado. Nenhum dos três ficaria feliz com a novidade, e certamente apontariam para a mesma solução. E então Clara continuaria a sentir-se só.

    Não achava justo ter que tomar essa decisão tão jovem. Mas sabia que se não fosse capaz de decidir sozinha, jamais seria capaz de dar à luz e criar a criança em que se transformaria o embrião que trazia em seu útero.

    Se realmente decidisse prosseguir com a gravidez e ter um filho, teria que largar a faculdade por pelo menos um ano, abandonar o grupo de ballet do qual fazia parte, e abrir mão da vaga de estágio pela qual estava lutando naqueles dias. Não parece tanta coisa, mas pensando no longo prazo, era todo um projeto de vida a ser jogado para o alto.

    Por outro lado, sussurrar a palavra aborto lhe dava calafrios. Não conseguia de maneira alguma pronunciar tal palavra em voz alta, quanto mais imaginar-se deitada em uma maca de hospital, tendo uma vida arrancada de dentro de seu corpo. Um pedaço de si mesma que seria extirpado, como se fosse uma verruga ou uma amígdala, que não servem para nada.

    Sentada naquele carro, com um envelope branco na mão, uma lágrima solitária a escorrer pelo seu nariz e tendo que optar entre um projeto de vida e um pedaço de seu corpo, Clara só tinha uma certeza: sem que conseguisse perceber quando, sua vida já tinha começado.





    Terça-feira, 07 de dezembro de 2004


    A garota do outdoor


    “Puta que pariu”. Foram essas as primeiras palavras de Vanessa em solo mexicano, seguidas de um longo silêncio.

    Logo que saiu do aeroporto, e antes mesmo de chegar ao ponto de táxi, avistou o outdoor do outro lado da rua. “Sin Solitud Café, las chicas más calientes de Mexico”. Não havia dúvida, era ela a “chica caliente” do outdoor.

    Cinco segundos foi tempo mais que suficiente para que ela se recordasse e se arrependesse amargamente do dia em que concordou em tirar aquelas fotos. Entre todos motivos considerados quando da decisão de posar para tais fotos, jamais passou por sua cabeça que, oito anos mais tarde, seu rosto e seu corpo poderiam estar estampados em um outdoor de puteiro mexicano. Mas estavam.

    Saber como aquela foto (tirada em Porto Alegre durante uma aula do curso de comunicação no dia 24 de setembro de 1996) podia estar estampada em um outdoor em frente ao aeroporto da Cidade do México no dia 12 de novembro de 2004 já não estava entre as maiores preocupações de Vanessa naquele momento, apesar de o questionamento “como?” cruzar seus pensamentos de quando em quando.

    O que realmente a preocupava era a reação do motorista de táxi que a levaria até o hotel, do recepcionista do hotel, do carregador de malas do hotel, e mais importante, do presidente da empresa multinacional que Vanessa visitaria naqueles dias, e para a qual pretendia trabalhar caso fosse aprovada na entrevista. De repente lhe pareceu que essa aprovação ficara mais difícil que o imaginado.

    Como sua passagem de volta estava marcada para a próxima semana, não encontrou outra alternativa a não ser pegar um táxi. O motorista, preocupado demais em garantir sua gorjeta para perceber que a passageira e a chica do outdoor eram a mesma pessoa, ajeitou cuidadosamente a pouca bagagem no porta-malas, subiu em seu táxi e deu início à oitava corrida do dia.

    Foi grande a surpresa de Vanessa ao contar 23 outdoors do “Sin Solitud Café” pelos 16 quilometros entre o aeroporto e Chapultepec, o bairro mais nobre da cidade. Maior ainda foi seu alívio ao chegar ao hotel sem ter ouvido sequer um comentário do taxista a esse respeito.

    Fez o check-in na recepção, subiu para um banho rápido e preferiu jantar no quarto. Não saiu naquele dia nem no dia seguinte, mas não podia evitar a entrevista, afinal de contas tinha ido ao México para arranjar um emprego e não para passar uma semana dentro do quarto do hotel.

    Mesmo em pânico, foi à entrevista. Nem o taxista, nem a recepcionista e nem o seu futuro chefe fizeram comentários sobre sua semelhança com a “chica más caliente de Mexico”. Talvez eles não tivessem mesmo reparado. Ou talvez todos a vissem como uma puta. E ninguém quer intimidades com uma.

    Apesar do nervosismo, tentou esquecer o outdoor e se concentrar na entrevista. Por mais que aparentasse tranquilidade, como teve que aprender para se manter na profissão, internamente estava desesperada. Esperava ouvir a qualquer momento a condenação de seu entrevistador. “Aqui não contratamos prostitutas”, diria ele secamente.

    Não disse. Vanessa conseguiu o emprego e nessa noite saiu para comemorar, enchendo a barriga de tacos, a cabeça de tequila e os ouvidos de canções de mariachis. Pela primeira vez desde que chegara ao Mexico, sentiu-se um tanto quanto ofendida por não ser reconhecida. Afinal de contas, era ela a “chica más caliente” do país. Ou será que sua beleza havia sido consumida pelos 8 anos que a separavam da garota da foto? Todo o pânico que havia sentido naqueles dias transformou-se em raiva e insegurança.

    No caminho de volta para o hotel, com a razão turvada pelo álcool, perguntou ao taxista se não a reconhecia como a garota do outdoor.

    “Pero ella es solamente una chica jovencita. Tu eres mujer.”

    Foi então que Vanessa compreendeu que realmente não era a menina do outdoor, e que jamais voltaria a sê-lo. E, ao contrário do que imaginava, sentiu-se feliz ao perceber que havia envelhecido.