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  • Terça-feira, 15 de fevereiro de 2005


    O Astronauta

    Deitado sobre a mesa deslizante, Bruno era só expectativa. Ao seu lado uma mulher bonita, toda vestida de branco, segurava uma seringa de injeção. Tinha medo de injeção desde suas primeiras lembranças, mas isso não era nada comparado ao entusiasmo de fazer seu primeiro vôo espacial.

    Enquanto sentia o algodão umedecendo seu braço e a agulha fria dando a primeira picada, imaginou-se dentro das roupas especiais com o símbolo da NASA, segurando o capacete enorme debaixo do braço direito e acenando para a multidão enquanto atravessava a passarela que o levaria para dentro da aeronave.

    Terminada a injeção, a máquina de tomografia começou a funcionar. Bruno levantou um pouco a cabeça e olhou para dentro do tubo onde seu corpo escorregaria em breve. A máquina era bem mais barulhenta do que imaginava, mas respirou fundo e se preparou para o exame.

    Enquanto a mesa e seu corpo iam deslizando para dentro do tubo, sentia-se cada vez mais perto de realizar o seu sonho. Um sonho que todas as crianças já tiveram um dia. Um sonho que parecia impossível, mas que podia se realizar. Que estava a poucos dias de se realizar.

    A cabine da nave não deveria ser muito maior que aquele tubo, mas pelo menos não ficaria o tempo todo com as mãos e os pés amarrados. Provavelmente não teria muito espaço para se mexer, mas teria tanto trabalho pra comandar a nave espacial que não sobraria muito tempo pra ficar se mexendo. Pilotar uma nave espacial é muito difícil.

    Dentro do tubo, o barulho era muito mais alto, e as paredes ficavam se mexendo o tempo todo, pra lá e pra cá, indo e voltando. Bruno ainda não tinha certeza de qual seria a melhor parte da viagem. Talvez fosse ver a Terra lá de cima, toda azulzinha, coberta de nuvens e tudo. Ou talvez fosse a volta, quando seria recebido com festa e daria muitas entrevistas.

    Estava tão entretido com a festa de sua chegada, que nem percebeu que o exame já tinha acabado. Levantou-se da mesa e foi para a sala de espera, onde ganhou um chocolate e ficou lendo gibis até ser chamado pelo médico.

    O doutor Leandro, que tinha cabelos escuros e o bigode cinza, explicou tudo direitinho pra ele. Teria que fazer quimioterapia. Isso não podia ser muito bom, porque sua mãe chorou bastante. Mas Bruno preferiu fazer de conta que quimioterapia era um tratamento especial de astronauta, pra poder andar na lua. E foi isso que ele falou pra todos os seus amigos da escola, que ficaram morrendo de inveja.




    Terça-feira, 01 de fevereiro de 2005

    Motivações

    No exato momento que seu pé-direito tocava o chão da empresa em que trabalhava, Renato fez o sinal da cruz. Com a ponta dos dedos médio e indicador tocou a testa, o peito, o ombro esquerdo, o ombro direito e os lábios. Não disse palavra, mas dentro de seu coração agradeceu a Deus por mais um dia de saúde e trabalho.

    Não que ele tivesse um gosto exacerbado pelo trabalho, mas sabia reconhecer a importância de estar empregado. Mais que isso, reconhecia a importância de estar empregado em um negócio legal, longe do crime. Trabalho honesto, office-boy em um escritório do centro, quatrocentos reais por mês, segundo o que estava registrado em sua carteira de trabalho.

    Nem por isso deixava de ser importunado pela polícia, afinal de contas um emprego honesto não muda a cor da sua pele nem o olhar receoso de quem já teve muito motivo pra temer e fugir da lei. A cicatriz no ombro, herança da facada que recebeu do irmão em uma briga de criança, também dava muita corda pra imaginação dos soldados.

    Por uma ironia que só a vida real é capaz de proporcionar, Renato visitou a delegacia por duas vezes, as duas depois de ter arrumado o tal emprego de boy. Nas duas vezes, pelo descuido de ter esquecido a carteira de trabalho em casa. Durante os três anos e oito meses que integrou uma gangue de pichadores teve que correr muito da polícia, mas nunca foi pego. Nem durante os quatro meses roubando CD-players de carro. Pura ironia.

    Se os motivos pelo qual Renato decidiu abandonar os furtos e dedicar-se a uma carreira de caminhadas, conduções, filas de banco e cartórios nos permanecem obscuros, os motivos pelo qual praticou crimes durante boa parte de sua vida são conhecidos. Como quase todos os seus amigos, Renato não conheceu o pai, apanhou do padrasto durante alguns anos, largou a escola cedo e encontrou na pichação um meio de ser respeitado pelas garotas.

    Daí a acompanhar o irmão mais velho nos roubos foi um pulo. Não se condenava pelo que fazia, pois os ricos têm muito dinheiro e podem comprar um novo som para os carros. Ele não tinha nada e ia trocar aquele som por comida. E por roupas, drogas, mulheres e outros artigos indispensáveis na vida de um jovem. E que não podem ser comprados com salário de trabalhador.

    Muita gente acha que Renato decidiu largar o crime quando o irmão mais velho foi preso. Outros acham que foi por causa da morte do irmão, esfaqueado depois de quatro dias na carceragem da delegacia. Priscila, namorada de Renato, acha que foi por amor a ela, que não admitia namorar um bandido.

    Ao começar mais um dia de trabalho, Renato fez o sinal da cruz e agradeceu a Deus por estar vivo, com saúde e trabalhando. E apesar de ter a certeza de estar fazendo a coisa certa, nem mesmo ele conhece os motivos que o fizeram trocar dinheiro, roupa, drogas e mulheres por uma vida de caminhadas, conduções, filas de banco e quatrocentos reais por mês.