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  • Terça-feira, 18 de janeiro de 2005

    Por quê?

    “Pai, por quê aqueles meninos ficam no farol vendendo bala enquanto eu vou pra escola?”

    Roberto sabia que, mais dia menos dia, teria que responder a essa pergunta. Soube disso antes do nascimento do Lucas, e antes ainda de ficar sabendo da gravidez de Luisa. E entre todas as perguntas embaraçosas que uma criança de seis anos pode fazer, essa era a que ele mais temia ouvir.

    Como explicar toda uma história de disparidade social e econômica cultivada pelo país desde sua fundação a uma criança de seis anos? Como explicar a uma criança que ela vai à escola porque seu pai teve a chance e a capacidade de frequentar a escola, arrumar um trabalho e acumular riquezas enquanto que aqueles meninos provavelmente nem sabiam o que era ter um pai?

    Seria justo contar a uma criança de seis anos, que tem por hábito comer três refeições diárias, escovar os dentes quatro vezes por dia, e ir ao médico e ao dentista três vezes por ano (embora isso fosse um exagero da Luisa) que os meninos de rua não tem nem um teto pra se esconder da chuva?

    Se fosse explicar tudo isso, também teria que explicar que a riqueza do país tem diminuído, cada vez menos gente consegue arrumar um emprego, e que a chance de um daqueles meninos se tornar um assaltante no futuro era muito grande. E que isso nem era culpa dos meninos, era culpa do Estado, da sociedade, culpa dele mesmo, que nunca fez nada pra mudar a situação.

    Roberto logo começou a torcer para que o filho se distraísse com alguma coisa na rua e esquecesse da pergunta feita há pouco, mas a quantidade de crianças nos faróis era muito maior que a capacidade de qualquer ser humano provido de visão não reparar na miséria que se espalhava pelas esquinas. E cruzamento após cruzamento a miséria mostrava a face mais infeliz desse país.

    Por pouco tempo Roberto quis ser religioso, e acreditar que era por vontade de Deus que barbaridades como essa se tornavam possíveis. Mas, ainda que acreditasse na existência de um deus qualquer, sabia que ele não seria sacana o suficiente para permitir uma situação dessas.

    Encurralado, sem saber como poderia explicar tudo isso para uma criança de seis anos, Roberto percebeu que apesar de todos os seus conhecimentos de história, geografia, sociologia, antropologia, política e economia demonstrarem que tal situação era perfeitamente explicável, uma criança jamais poderia entender. Assim como seu coração não entendia.

    Envergonhado, respondeu a seu filho da única maneira honesta possível:

    “Não sei filho. Não sei.”



    Terça-feira, 11 de janeiro de 2005


    No fim


    Primeiro foi a ar a lhe faltar. E quando poucos segundos depois os braços e pernas começaram a formigar, Ismael teve a certeza que não passaria daquela noite, como o próprio médico já tinha lhe advertido. Só não imaginava que seria tão rapidamente.

    Sentia aos poucos a sonolência tomando conta de seu cérebro, embora não soubesse dizer se era efeito de alguma droga sedativa ou o fim de tudo se apossando de sua consciência. Tentou olhar para o braço à procura de uma injeção, mas não teve forças para virar a cabeça.

    É incrível a quantidade de pensamentos que passam pela cabeça de um homem à beira da morte em tão poucos segundos, mas o que realmente deixou Ismael espantado foi a forma como esses pensamentos afluíam em sua mente. Não se parecia em nada com um filme, não via toda sua vida passar diante dos seus olhos em um segundo.

    Ismael viu com clareza seus avós, seus pais, filhos e netos, e muitas outras pessoas de quem não conseguia se recordar, embora tivesse a certeza de que os tinha amado. Ainda os amava, e com uma intensidade maior que nunca. Percebeu que naquele instante o amor que havia sentido e principalmente o que tinha doado era mais importante e mais forte do que o medo da morte que sentiu por toda sua vida.

    Mesmo tendo sido um amante da natureza por toda a vida, aproveitando cada gota de sol que tocou sua pele, cada lufada de brisa na praia e todas as chuvas que teve de enfrentar sem abrigo, nunca havia sentido tamanha intimidade com a vida, com a terra e com o céu como sentia naquela cama de hospital.

    Quase conseguiu ouvir a voz de sua já finada esposa o chamando para junto dela, mas seu ceticismo era tamanho que mesmo a meio segundo de estar clinicamente morto, teve tempo de convencer a si próprio que não passava de uma peça que seu inconsciente tentava lhe pregar.

    Começou a pensar no lugar para onde iria, se é que iria para algum lugar. Uma pontinha de medo ameaçou instalar-se em seu coração, mas sentindo-se infinitamente fraco considerou que seria um enorme desperdício perder o pouquíssimo tempo que restava pensando em algo que iria descobrir prontamente.

    Decidido a usar melhor aquele fio de vida que ainda restava, olhou para o irmão, e deciciu perdoá-lo, vinte e três anos após uma briga cujos motivos jamais conheceremos. Não conseguiu emitir um só som ou fazer qualquer movimento com a cabeça, mas tinha certeza que seu irmão reconheceria o amor e o perdão naquele último olhar. E foi esse o último pensamento de Ismael.