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  • Terça-feira, 30 de agosto de 2005

    Sonhos

    Sonhar é uma tarefa das mais fáceis, ao ponto que tornar os sonhos realidade é algo completamente diferente. Todos sonhamos com alguma coisa: uma casa, um amor, luxúria, muito dinheiro, justiça social ou até mesmo a paz mundial. Poucos somos os que conseguimos realizar nossos sonhos.

    Algumas pessoas cometem o disparate de afirmar que perderam a capacidade de sonhar. Que o mundo os transformou em cínicos, descrentes da felicidade, de Deus, da vida e até da morte. Mas eu não acredito que bem no fundo de seus corações não haja um único sonho, ainda que bem pequeno, daqueles assim mirradinhos, como saborear um filé com fritas ou morder as coxas da dona do botequim da esquina.

    Dizem que Deus só dá a uma pessoa os fardos que essa possa carregar. Se os fardos são sempre proporcionais à capacidade do seu carregador, por qual razão os sonhos são tão mal distribuídos? Afinal, são bem poucos aqueles que sonham com o realizável.

    É fácil afirmar que muitos brasileiros sonharam com o prêmio da Super Mega-Sena acumulada, aquela que pagou quase setenta milhões de reais; mas o único ganhador foi um pernambucano lá de Arco-verde, que ganhou o bilhete numa mesa de bilhar e só sonhava com os peitos da Marizete. E é bom que se diga, teve seu sonho realizado poucos horas depois de descobrir que o bilhete fora o premiado.

    Já Andréa, uma menina do alto dos seus sete anos, só sonhava em se casar com o sorveteiro pra herdar todos os picolés de frutas. O irmão sonhava com os picolés de chocolate que ganharia do cunhado sorveteiro. O sorveteiro, casado com uma mulher infértil, sonhava com filhos a quem pudesse dar picolés dos mais diversos sabores, além de muito amor.

    A verdade é que os sonhos só fazem sentido quando são impossíveis. Para um caixa de banco, jogar uma partida de futebol no gramado do Pacaembu é um sonho distante. Já o centroavante de um time grande de futebol sonha em poder caminhar pelas ruas tranqüilamente, sem o assédio dos repórteres ou dos torcedores. Os famosos sonham com uma vida normal, enquanto todos os demais sonham com uma vida de estrela.

    Seria uma inverdade dizer que sonhos não se realizam. Mas mesmo aqueles que se realizam, invariavelmente têm um sabor um tanto quanto azedo. Um sonho realizado deixa de ser um sonho, é apenas um acontecimento da vida real. E todos sabemos que a vida real, por melhor que seja, não chega aos pés de um sonho. Os sonhos não têm data de validade; a vida passa, e passa rápido. O sonho é sempre daquele jeitinho que você sonhou, com trilha sonora e tudo. Na vida real existem os problemas, como a champagne que não estoura, a cerveja quente, a celulite e a broxada.

    Eu diria que alguns sonhos devem ser alcançados, mas esses têm de ter outro nome: objetivo. Já os impossíveis, esses devem ser apenas sonhados. Com direito a champagne que estoura e trilha sonora original.



    Terça-feira, 31 de maio de 2005


    Michele

    Olavo ainda não sabe disso, mas sua vida vai se complicar bastante por causa da Internet.

    Olavo é pai de Michele - que tem 14 anos, possui três contas de e-mail, um blog, um flog, participa de mais de 60 comunidades no orkut e tem quase 200 contatos em um programa de mensagem instantânea.

    Olavo pensa que ela passa muito tempo em frente ao computador. Ele gostaria que sua filha tivesse mais amigos, saísse mais, e até estranha o fato de ainda não ter aparecido nenhum namoradinho, nem ao menos uma paquerinha na vida de sua filha.

    O que Olavo não sabe é que ela tem não só um, mas três namoradinhos. Todos virtuais. E que inclusive já fez sexo, naturalmente virtual, com um deles. Michele até quis dividir com a mãe a emoção da sua primeira relação sexual, mas achou que ela não entenderia.

    O que Michele não sabia era que seu namorado virtual Carlinhos, um menino de dezesseis anos de Curitiba, não manteria o mesmo segredo sobre a relação deles. E que espalharia para todos os amigos o vídeo desse encontro virtual.

    Claro que isso passaria batido se um dos amigos de Carlinhos não tivesse encaminhado o vídeo para todos os seus contatos. E se um desses contatos não fosse responsável por um site de pedofilia. Por trinta e nove reais e noventa centavos por mês os associados têm acesso a muitas fotos e vídeos de garotinhas, como por exemplo, o vídeo de Michele.

    Olavo não é má pessoa. Trata sua filha e esposa com muito carinho, é um homem trabalhador, e nunca tocou um dedo em uma criança. Mas digamos que, nas horas vagas, ele gosta de ver pornografia, de preferência com meninas novinhas. Ele não é um monstro, jamais machucaria uma criança, e acha que ver foto não tira pedaço, não é mesmo?

    Não, Olavo acha que ver foto não tira pedaço. Afinal de contas, se a menina está lá se mostrando é porque ela quis. Principalmente nesses tempos de câmeras digitais e webcams, não é como se tivesse um adulto obrigando a menina a se masturbar para a câmera.

    De consciência quase tranqüila, Olavo liga seu computador e se conecta à rede. Entra em um site de pedofilia do qual é sócio, digita sua senha e tenta decidir pelo vídeo que vai assistir hoje. Acha graça que a menina de um dos vídeos tenha o mesmo nome de sua filha.

    Enquanto espera o vídeo carregar, Olavo não faz idéia do que está por vir. Ele ainda não sabe, mas sua vida está prestes a desmoronar.




    Terça-feira, 24 de maio de 2005

    Ciúmes

    Toca o telefone celular de Carlos. Luisa, dispensada mais cedo do trabalho, avisa o marido que vai ao cinema com um colega de escritório. Que vai chegar em casa no meio da tarde, e que por essa razão irá preparar um jantar, ao invés de saírem para jantar como fora combinado anteriormente.

    Carlos ouve, deseja um bom divertimento a Luisa, diz que a ama, e desliga o telefone. Transtornado.

    O ciúme pode destruir um relacionamento. Mais que isso, o ciúme pode destruir uma vida. De todos os sentimentos humanos, é provavelmente o mais nefasto. Claro que ódio, desprezo e vingança são ruins, mas só o ciúme tem o poder de desencadear todos esses sentimentos.

    E não é só isso. O ciúme é um sentimento que surge dentro do indivíduo. A sede de vingança, o ódio e o desprezo geralmente são criados por fatores externos. Eu quero vingança porque mataram meu pai, eu tenho ódio de alguém que me humilhou, eu sinto desprezo por alguém que me magoou. Mas eu sinto ciúmes de alguém que eu amo.

    Carlos sabe disso. E por essa razão sofre tanto. Ele sabe que está sendo consumido por um sentimento que não encontra sentido em outro lugar que não sua própria insegurança. Sente-se vítima de si mesmo, e teme que alguma gota de ressentimento possa respingar em Luisa, cuja única culpa em toda essa história, é ser amada.

    Talvez Luisa tenha outras culpas: é bonita, inteligente, e sua timidez a torna especialmente intrigante e desejável. Carlos sabe porque fora atraído por esse desejo quando a conheceu. Será possível que outros homens não percebam?

    Claro que percebem. E desejam. E alguns farão de tudo para conquista-la. Afinal de contas, se um sujeito que só é especial aos olhos de Luisa conseguiu, por que não outros, mais bonitos e mais inteligentes que ele?

    Carlos confia em Luisa. Confiança é o elemento sem o qual relacionamento nenhum pode funcionar por mais de poucas horas. Ela jamais dera motivos para que ele não confiasse. Carlos acredita, do fundo de seu coração, que Luisa jamais teria outro homem sem que ele soubesse primeiro.

    O único problema de Carlos é explicar isso para seu estômago, que insiste em se comportar como se fosse uma secadora de roupas. Suas mãos também têm dificuldades para entender esse conceito de confiança, já que elas estão geladas, e suam sem parar.

    Carlos sabe que o dia está perdido. Não conseguirá se concentrar no trabalho, terá dificuldades para comer, e gastará cada minuto pensando em Luisa, em seu colega de trabalho e em uma sala de cinema qualquer.

    E assim será até que Carlos chegue em casa e encontre Luisa, que estará esperando por ele, tão apaixonada e inocente como no dia em que se conheceram. Luisa dirá que o ama, e que sentiu falta de sua companhia no cinema. E durante um abraço, Carlos voltará a sentir-se o homem mais feliz do mundo.



    Terça-feira, 17 de maio de 2005

    Vida de escritor

    Miguel escreve contos em uma revista semanal de circulação nacional. Também escreve crônicas duas vezes por semana. Crônicas essas que são publicadas em jornais de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Goiânia, e em mais 14 cidades cujos nomes Miguel raramente consegue lembrar.

    Nas livrarias - buscando na seção literatura brasileira, subseção contos e crônicas, por ordem alfabética de sobrenome de autor, na letra J - podemos encontrar treze títulos escritos por Miguel. Onze são coletâneas dos melhores textos anteriormente publicados em jornais ou revistas. Dois são publicações de contos inéditos.

    Além disso, já escreveu dois romances, ambos publicados por uma grande editora. Ambos foram elogiados pela crítica, com direito a um prêmio Jabuti e tudo. E mais importante, ambos tiveram vendagens acima do esperado.

    Paulistano de nascimento, Miguel hoje vive em Florianópolis. Mora em uma casa na beira da praia, e faz da varanda seu escritório, graças à invenção do laptop. Muitas vezes escreve seus textos enquanto vê sua filha Luisa, de sete anos, brincar na areia da praia, e tendo como companhia seu filho Mateus, de três anos, cochilando na rede ao lado.

    Ao contrário de muitos escritores, não faz questão de ler tudo o que se publica sobre seu trabalho, muito menos de guardar os recortes de jornais e revistas. Até porque ele sabe que tanto sua mãe como sua esposa já fazem esse trabalho melhor do que ele seria capaz.

    Sujeito falador, Miguel gosta de dar entrevistas. Principalmente porque não se fazem perguntas pessoais a escritores. Às vezes o incomoda um pouco ser chamado para opinar em assuntos tão diversos quanto a taxa de juros e o último show do Carlinhos Brown, já que por alguma razão os meios de comunicação o consideram um formador de opinião. E assim, lá está Miguel repercutindo todo e qualquer acontecimento.

    Poderíamos chegar ao extremo de dizer que Miguel tem o que muitos chamariam de uma vida perfeita. É muito bem pago para fazer o que gosta, trabalha de frente para o mar sem sair de casa, é unanimemente reconhecido por seu talento, mas conserva sua privacidade intacta e, além disso, tem filhos lindos.

    Miguel reconhece que é uma pessoa privilegiada e agradece a Deus por tudo o que conseguiu, mas não é um homem feliz. O que ele queria mesmo era ser poeta.




    Terça-feira, 26 de abril de 2005

    O homem e o tempo

    O sofrimento humano é um sentimento absolutamente pessoal. E incomparável no caso dos homens livres.

    Definiremos aqui como homem livre aquele que não possui vícios ou crenças. O homem livre é livre justamente porque está apto a tomar suas decisões sem a interferência de um poder mais forte que o de sua própria consciência. Um fumante não pode decidir o destino de 100% de seus ganhos, pois uma parcela certamente será destinada para a compra de cigarros. Assim como um crente não pode tomar decisões desvinculadas do medo que sente do inferno.

    É certo que filósofos já escreveram centenas de teorias sobre a definição de homem, e também sobre a definição de liberdade. Seria desnecessário, já que homem todos sabemos o que é, e liberdade não explicamos, sentimos. Mas apesar de tudo isso, cá estou, tolo o suficiente para desenvolver uma nova teoria (que talvez já exista) sobre os homens livres.

    Estando definido (ou redefinido) o homem livre, reafirmo: não existe sofrimento maior que o deste. Pois o homem livre está sempre consciente de que todos os acontecimentos de sua vida são conseqüência direta de suas próprias decisões. Todos os seus erros têm que ser encarados de frente, sem desculpas ou subterfúgios.

    O viciado sempre pode jogar a responsabilidade dos seus atos sobre o álcool, a cocaína ou o chocolate. O crente pode atribuir suas misérias à vontade de Deus ou a influência do Diabo. Mas os homens livres simplesmente têm que lidar com o próprio fracasso.

    Não fosse isso doloroso o suficiente, o homem livre ainda se depara com outra dificuldade: tem que encarar o sofrimento de cara limpa e alma solitária. O homem livre não afoga sua dor em uísque escocês ou rabo de galo, não engole os problemas com bombons de cereja, não compra a paz com cartão de crédito e nem mesmo pode esperar pelo consolo imaterial de um Deus que ele acredita não existir.

    Ao homem livre, só resta uma saída: o tempo, que é alheio aos vícios, às crenças, às alegrias e ao sofrimento humano.

    O tempo, que passa e leva consigo o conforto passageiro dos viciados, o medo dos crentes, e também a dor verdadeira e incomparável do homem livre.










    Terça-feira, 22 de março de 2005

    Dois futuros possíveis

    Segunda-feira, seis e meia da manhã. Marília caminha apressada para o metrô, tentando não pensar na prova de reologia que terá de enfrentar em exatamente uma hora. Talvez no trem consiga dormir alguns minutos, já que a noite foi à base de café e livros.

    Marília sabe que não é só mais uma prova. Se não conseguir responder corretamente pelo menos oitenta por cento das perguntas, será reprovada na matéria. E caso seja reprovada nessa matéria, não só sua graduação será atrasada em um ano, como também perderá o benefício da bolsa de estudos.

    Não demora muito tempo até que Marília extrapole seus pensamentos e imagine o impacto que uma simples prova da faculdade pode exercer em sua vida. Se tirar oito na prova, continua na faculdade. Vai se formar, tornar-se uma profissional graduada e conseguir um emprego decente. Vai progredir na carreira, quem sabe chegar a um posto de chefia ou quem sabe diretoria. Vai comprar uma casinha, casar, ter filhos, pagar uma boa escola, remédios, inglês, computação. E talvez daqui a 30 anos seus filhos não tenham que tirar oito na prova de reologia para manter a bolsa de estudos.

    Mas a imaginação é muito mais fértil quando se trata de imaginar o fracasso. Nota baixa na prova, fim da bolsa e expulsão da faculdade por falta de pagamentos. Vai ter que arrumar um emprego como secretária, quando muito balconista de loja de shopping. Mas pra quem tem a pele daquela cor, tudo fica mais difícil. Vai acabar virando faxineira, morando pra lá da periferia em um barraco alugado, apanhando de um marido bêbado e desempregado, enquanto vê seus filhos pedindo esmola nos faróis do centro. E Marília não quer pros filhos a infância que viveu. Tem que tirar oito na prova.

    Seis e quarenta e oito. Marília entra no metrô lotado, encosta-se em uma barra de sustentação e apaga. Sete e doze, Estação Anhangabaú, Marília acorda. O sono foi pesado, e insuficiente. Em quatro minutos desce do trem, atravessa a plataforma, passa pelas catracas, e sai da estação. Sete e dezesseis, faltam quatorze minutos para o início da prova. São oito de caminhada até a entrada da faculdade, três para chegar na sala de aula, e ainda sobram três minutos de folga.

    No caminho entre a estação de metrô e a faculdade, sete mendigos deitados na calçada jogam na cara de Marília um futuro que, se não é o mais provável, não deixa de ser impossível. A cada indigente jogado no chão, uma pontada de dor na barriga. O nervosismo aumenta a cada passo dado, a cada minuto transcorrido.

    Sete e vinte e quatro, Marília entra na faculdade. O silêncio no saguão de entrada indica que ela não é a única aluna preocupada com a prova que começa em pouco mais de cinco minutos. Sobe as escadas lentamente, tentando controlar a ansiedade. Tem vontade de correr, chegar logo à sala, fazer a prova e acabar com isso de uma vez. Mas os ponteiros do relógio não compartilham do seu estado de nervosismo, e seguem se movendo de segundo em segundo, minuto em minuto.

    Sete e vinte e sete, já na porta da sala Marília toma um gole de água, guarda a garrafa na bolsa e passa pela porta. Sete e vinte e oito, Marília senta em sua cadeira e reza. Pede a Deus que reserve a ela o futuro mais límpido e tranqüilo. Sete e vinte e nove, termina a oração e fica por mais um minuto olhando para os lados enquanto o examinador distribui as provas. Marília recebe sua prova e espera a autorização para começar.

    Sete e trinta, soa a campainha. A partir desse instante, Marília tem exatos quarenta e cinco minutos para decidir entre dois futuros tão distintos, e ainda assim tão reais.



    Terça-feira, 01 de março de 2005


    Micro-conto: flor


    Pai e filho caminham. Encantado com a beleza de uma flor roxa, o pai lamenta não saber seu nome: “Isso debaixo dos nossos pés é asfalto. A gente sabe não só o nome, mas também como e do que é feito. E não sabemos o nome de uma flor”.

    Ao que o filho retruca: “Ao menos ainda não perdemos a capacidade de vê-la”.



    Terça-feira, 15 de fevereiro de 2005


    O Astronauta

    Deitado sobre a mesa deslizante, Bruno era só expectativa. Ao seu lado uma mulher bonita, toda vestida de branco, segurava uma seringa de injeção. Tinha medo de injeção desde suas primeiras lembranças, mas isso não era nada comparado ao entusiasmo de fazer seu primeiro vôo espacial.

    Enquanto sentia o algodão umedecendo seu braço e a agulha fria dando a primeira picada, imaginou-se dentro das roupas especiais com o símbolo da NASA, segurando o capacete enorme debaixo do braço direito e acenando para a multidão enquanto atravessava a passarela que o levaria para dentro da aeronave.

    Terminada a injeção, a máquina de tomografia começou a funcionar. Bruno levantou um pouco a cabeça e olhou para dentro do tubo onde seu corpo escorregaria em breve. A máquina era bem mais barulhenta do que imaginava, mas respirou fundo e se preparou para o exame.

    Enquanto a mesa e seu corpo iam deslizando para dentro do tubo, sentia-se cada vez mais perto de realizar o seu sonho. Um sonho que todas as crianças já tiveram um dia. Um sonho que parecia impossível, mas que podia se realizar. Que estava a poucos dias de se realizar.

    A cabine da nave não deveria ser muito maior que aquele tubo, mas pelo menos não ficaria o tempo todo com as mãos e os pés amarrados. Provavelmente não teria muito espaço para se mexer, mas teria tanto trabalho pra comandar a nave espacial que não sobraria muito tempo pra ficar se mexendo. Pilotar uma nave espacial é muito difícil.

    Dentro do tubo, o barulho era muito mais alto, e as paredes ficavam se mexendo o tempo todo, pra lá e pra cá, indo e voltando. Bruno ainda não tinha certeza de qual seria a melhor parte da viagem. Talvez fosse ver a Terra lá de cima, toda azulzinha, coberta de nuvens e tudo. Ou talvez fosse a volta, quando seria recebido com festa e daria muitas entrevistas.

    Estava tão entretido com a festa de sua chegada, que nem percebeu que o exame já tinha acabado. Levantou-se da mesa e foi para a sala de espera, onde ganhou um chocolate e ficou lendo gibis até ser chamado pelo médico.

    O doutor Leandro, que tinha cabelos escuros e o bigode cinza, explicou tudo direitinho pra ele. Teria que fazer quimioterapia. Isso não podia ser muito bom, porque sua mãe chorou bastante. Mas Bruno preferiu fazer de conta que quimioterapia era um tratamento especial de astronauta, pra poder andar na lua. E foi isso que ele falou pra todos os seus amigos da escola, que ficaram morrendo de inveja.




    Terça-feira, 01 de fevereiro de 2005

    Motivações

    No exato momento que seu pé-direito tocava o chão da empresa em que trabalhava, Renato fez o sinal da cruz. Com a ponta dos dedos médio e indicador tocou a testa, o peito, o ombro esquerdo, o ombro direito e os lábios. Não disse palavra, mas dentro de seu coração agradeceu a Deus por mais um dia de saúde e trabalho.

    Não que ele tivesse um gosto exacerbado pelo trabalho, mas sabia reconhecer a importância de estar empregado. Mais que isso, reconhecia a importância de estar empregado em um negócio legal, longe do crime. Trabalho honesto, office-boy em um escritório do centro, quatrocentos reais por mês, segundo o que estava registrado em sua carteira de trabalho.

    Nem por isso deixava de ser importunado pela polícia, afinal de contas um emprego honesto não muda a cor da sua pele nem o olhar receoso de quem já teve muito motivo pra temer e fugir da lei. A cicatriz no ombro, herança da facada que recebeu do irmão em uma briga de criança, também dava muita corda pra imaginação dos soldados.

    Por uma ironia que só a vida real é capaz de proporcionar, Renato visitou a delegacia por duas vezes, as duas depois de ter arrumado o tal emprego de boy. Nas duas vezes, pelo descuido de ter esquecido a carteira de trabalho em casa. Durante os três anos e oito meses que integrou uma gangue de pichadores teve que correr muito da polícia, mas nunca foi pego. Nem durante os quatro meses roubando CD-players de carro. Pura ironia.

    Se os motivos pelo qual Renato decidiu abandonar os furtos e dedicar-se a uma carreira de caminhadas, conduções, filas de banco e cartórios nos permanecem obscuros, os motivos pelo qual praticou crimes durante boa parte de sua vida são conhecidos. Como quase todos os seus amigos, Renato não conheceu o pai, apanhou do padrasto durante alguns anos, largou a escola cedo e encontrou na pichação um meio de ser respeitado pelas garotas.

    Daí a acompanhar o irmão mais velho nos roubos foi um pulo. Não se condenava pelo que fazia, pois os ricos têm muito dinheiro e podem comprar um novo som para os carros. Ele não tinha nada e ia trocar aquele som por comida. E por roupas, drogas, mulheres e outros artigos indispensáveis na vida de um jovem. E que não podem ser comprados com salário de trabalhador.

    Muita gente acha que Renato decidiu largar o crime quando o irmão mais velho foi preso. Outros acham que foi por causa da morte do irmão, esfaqueado depois de quatro dias na carceragem da delegacia. Priscila, namorada de Renato, acha que foi por amor a ela, que não admitia namorar um bandido.

    Ao começar mais um dia de trabalho, Renato fez o sinal da cruz e agradeceu a Deus por estar vivo, com saúde e trabalhando. E apesar de ter a certeza de estar fazendo a coisa certa, nem mesmo ele conhece os motivos que o fizeram trocar dinheiro, roupa, drogas e mulheres por uma vida de caminhadas, conduções, filas de banco e quatrocentos reais por mês.



    Terça-feira, 18 de janeiro de 2005

    Por quê?

    “Pai, por quê aqueles meninos ficam no farol vendendo bala enquanto eu vou pra escola?”

    Roberto sabia que, mais dia menos dia, teria que responder a essa pergunta. Soube disso antes do nascimento do Lucas, e antes ainda de ficar sabendo da gravidez de Luisa. E entre todas as perguntas embaraçosas que uma criança de seis anos pode fazer, essa era a que ele mais temia ouvir.

    Como explicar toda uma história de disparidade social e econômica cultivada pelo país desde sua fundação a uma criança de seis anos? Como explicar a uma criança que ela vai à escola porque seu pai teve a chance e a capacidade de frequentar a escola, arrumar um trabalho e acumular riquezas enquanto que aqueles meninos provavelmente nem sabiam o que era ter um pai?

    Seria justo contar a uma criança de seis anos, que tem por hábito comer três refeições diárias, escovar os dentes quatro vezes por dia, e ir ao médico e ao dentista três vezes por ano (embora isso fosse um exagero da Luisa) que os meninos de rua não tem nem um teto pra se esconder da chuva?

    Se fosse explicar tudo isso, também teria que explicar que a riqueza do país tem diminuído, cada vez menos gente consegue arrumar um emprego, e que a chance de um daqueles meninos se tornar um assaltante no futuro era muito grande. E que isso nem era culpa dos meninos, era culpa do Estado, da sociedade, culpa dele mesmo, que nunca fez nada pra mudar a situação.

    Roberto logo começou a torcer para que o filho se distraísse com alguma coisa na rua e esquecesse da pergunta feita há pouco, mas a quantidade de crianças nos faróis era muito maior que a capacidade de qualquer ser humano provido de visão não reparar na miséria que se espalhava pelas esquinas. E cruzamento após cruzamento a miséria mostrava a face mais infeliz desse país.

    Por pouco tempo Roberto quis ser religioso, e acreditar que era por vontade de Deus que barbaridades como essa se tornavam possíveis. Mas, ainda que acreditasse na existência de um deus qualquer, sabia que ele não seria sacana o suficiente para permitir uma situação dessas.

    Encurralado, sem saber como poderia explicar tudo isso para uma criança de seis anos, Roberto percebeu que apesar de todos os seus conhecimentos de história, geografia, sociologia, antropologia, política e economia demonstrarem que tal situação era perfeitamente explicável, uma criança jamais poderia entender. Assim como seu coração não entendia.

    Envergonhado, respondeu a seu filho da única maneira honesta possível:

    “Não sei filho. Não sei.”



    Terça-feira, 11 de janeiro de 2005


    No fim


    Primeiro foi a ar a lhe faltar. E quando poucos segundos depois os braços e pernas começaram a formigar, Ismael teve a certeza que não passaria daquela noite, como o próprio médico já tinha lhe advertido. Só não imaginava que seria tão rapidamente.

    Sentia aos poucos a sonolência tomando conta de seu cérebro, embora não soubesse dizer se era efeito de alguma droga sedativa ou o fim de tudo se apossando de sua consciência. Tentou olhar para o braço à procura de uma injeção, mas não teve forças para virar a cabeça.

    É incrível a quantidade de pensamentos que passam pela cabeça de um homem à beira da morte em tão poucos segundos, mas o que realmente deixou Ismael espantado foi a forma como esses pensamentos afluíam em sua mente. Não se parecia em nada com um filme, não via toda sua vida passar diante dos seus olhos em um segundo.

    Ismael viu com clareza seus avós, seus pais, filhos e netos, e muitas outras pessoas de quem não conseguia se recordar, embora tivesse a certeza de que os tinha amado. Ainda os amava, e com uma intensidade maior que nunca. Percebeu que naquele instante o amor que havia sentido e principalmente o que tinha doado era mais importante e mais forte do que o medo da morte que sentiu por toda sua vida.

    Mesmo tendo sido um amante da natureza por toda a vida, aproveitando cada gota de sol que tocou sua pele, cada lufada de brisa na praia e todas as chuvas que teve de enfrentar sem abrigo, nunca havia sentido tamanha intimidade com a vida, com a terra e com o céu como sentia naquela cama de hospital.

    Quase conseguiu ouvir a voz de sua já finada esposa o chamando para junto dela, mas seu ceticismo era tamanho que mesmo a meio segundo de estar clinicamente morto, teve tempo de convencer a si próprio que não passava de uma peça que seu inconsciente tentava lhe pregar.

    Começou a pensar no lugar para onde iria, se é que iria para algum lugar. Uma pontinha de medo ameaçou instalar-se em seu coração, mas sentindo-se infinitamente fraco considerou que seria um enorme desperdício perder o pouquíssimo tempo que restava pensando em algo que iria descobrir prontamente.

    Decidido a usar melhor aquele fio de vida que ainda restava, olhou para o irmão, e deciciu perdoá-lo, vinte e três anos após uma briga cujos motivos jamais conheceremos. Não conseguiu emitir um só som ou fazer qualquer movimento com a cabeça, mas tinha certeza que seu irmão reconheceria o amor e o perdão naquele último olhar. E foi esse o último pensamento de Ismael.




    Terça-feira, 21 de dezembro de 2004

    Suicídio

    Passou os últimos dias pensando na vida: abandonado pela mulher, sem emprego, nenhuma expectativa. Estava decidido, iria se matar. O suicídio parecia ser a única esperança, já que não tinha família, não tinha amigos, não tinha emprego, o dinheiro se esgotara e sua única companhia, uma garrafa de cachaça, estava vazia.

    Suicídio, estava decidido. Utilizando a lógica irrefutável de todo suicida, dizia para si mesmo que a morte não poderia ser pior que a vida que levava. Tentou lembrar-se de alguns casos que conhecia. Um homem que se atirou do décimo andar, caiu, não morreu e ficou tetraplégico, o que não permitia sequer uma segunda tentativa. Achou arriscado demais tentar, até porque morava no terceiro andar, altura que não considerava suficiente.

    Lembrou-se então da mulher que matou o filho, deu um tiro na própria testa e não morreu, já que a bala ficou presa no crânio. Começou a pensar no quanto era trabalhoso acabar com a própria vida, como poderia ser a morte mais difícil que a vida miserável que o acompanhava? Mas estava certo: se mataria.

    Envenenado. Não há melhor maneira de morrer, pensou. Não faria sujeira nem barulho e melhor, não sentiria dor. Seria assim: Após o jantar, tomaria um cálice de veneno e morreria como Sócrates. Mas percebeu que não havia comida alguma em casa, quanto mais veneno. Decidiu então que iria até a farmácia mais próxima e compraria o tal veneno. Dali seguiria para o mercado para comprar alguma comida e uma garrafa nova de cachaça. Passaria em alguma loja para comprar um terno, não poderia ser encontrado tão mal vestido, e assim já estaria pronto para o enterro, se é que teria um. Ao voltar para casa, comeria como nunca comeu, tragaria um gole da sua cachaça e então encontrar-se-ia com a morte. Não sabia se iria para o céu ou para o inferno, não sabia sequer se iria para algum lugar. Será que existe o inferno? Melhor não pensar nisso, considerou.

    Sentia-se feliz com o seu plano, nada podia dar errado. Finalmente se veria livre desta desgraça que chamam vida. Quis morrer quando lembrou um dos motivos pelo qual queria se matar: não tinha dinheiro. Seu mundo desabou, e sentiu-se medíocre por não ter capacidade sequer para acabar com a própria vida. Mas não desistiria assim tão fácil, acharia outro meio de encontrar a morte.

    Iria se enforcar, como não tinha pensado nisso antes? Era tão óbvio, mas ao mesmo tempo tão complexo. Onde diabos poderia encontrar uma corda? Não se recordava de ter visto alguma em casa, mas algum vizinho havia de ter uma maldita corda. Tentou os vizinhos do terceiro, do segundo e do primeiro andar, e nada.

    Por um segundo chegou a pensar em desistir, mas não podia. A vida lhe era tão dura que nem mesmo esses contratempos o impediriam de morrer. Nada nem ninguém o faria. Desceu até a portaria, onde encontrou o zelador. Pediu-lhe uma corda. O encarregado de manter a ordem no prédio e atender os condôminos sempre que fosse possível não fez nenhuma pergunta e voltou rapidamente com o que lhe foi pedido.

    Ficou tão feliz quanto é possível para alguém que iria se matar e voltou para o seu apartamento. Dirigiu-se para o banheiro e pendurou-se no chuveiro para certificar-se de que o mesmo aguentaria o peso de seu corpo. Amarrou a corda, fez um laço e colocou sua cabeça dentro dele. Tirou-a. Pensou em deixar uma carta ou simples bilhete como fazem os suicidas, mas resolveu deixar de lado essa idéia, já que não tinha a quem dar explicações ou apenas dizer adeus.

    Subiu no banquinho que estava embaixo do chuveiro e colocou o laço no pescoço mais uma vez, e sem titubear pulou para a morte. Sentiu uma enorme pressão na garganta, sua vista se escureceu, podia sentir seus membros se contorcendo, a vida dando espaço para a morte, até que ouviu um enorme barulho e desfaleceu.

    Três minutos foi tempo suficiente para que acordasse e tomasse consciência do que o destino tinha lhe aprontado. Estava caído no chão, a corda no pescoço, o chuveiro ao seu lado. Ou seja, estava vivo.

    Levantou-se, foi para a janela e ficou a contemplar o movimento na rua. Aquela convicção quanto à idéia de morrrer havia desaparecido. Chegou à conclusão de que não era chegada sua hora, e mesmo que tentasse novamente, estava certo que não teria sucesso.

    Resolveu então viver novamente. Decidiu que no dia seguinte sairia para procurar emprego, conseguiria algum dinheiro e começaria uma nova vida. Devolveu a corda, consertou o chuveiro e comeu a pouca comida que restava na geladeira, que não foi suficiente para matar-lhe a fome. Foi dormir.

    Acordou na manhã seguinte cheio de esperanças. Tomou um banho, se arrumou, fez a barba e saiu disposto a conseguir um emprego. Entrou no elevador, saiu do elevador, cumprimentou o zelador, o porteiro, e o mundo já não parecia mais tão negro, nem a vida tão ruim.

    Saiu para a rua com a cabeça cheia de sonhos e o coração cheio de esperança. Fantasiava sua vida nova, um emprego, dinheiro, quem sabe até uma companheira. Atravessou a rua, imaginando-se dentro de um escritório, trabalhando novamente. Seus sonhos não permitiram que ele ouvisse a buzina do caminhão que passava.

    Morreu atropelado.




    Terça-feira, 14 de dezembro de 2004

    O princípio da vida


    Aos vinte e dois anos de idade, Clara ainda tinha dúvidas com relação à sua maturidade. Certamente não era uma criança, tampouco uma adolescente. Mas em hipótese nenhuma sentia-se adulta. Para todos os problemas cotidianos podia contar com seus pais. Conta do celular, seguro do carro, casa, comida e roupa lavada.

    Desde pequena ouvia a mesma ladainha. “Você precisa estudar, tem que se preparar para quando for adulta. Quando sua vida começar de verdade, você vai ter que estar preparada”. Sentia-se como se toda sua existência até então não passasse de um treinamento para a vida real. O difícil era saber quando essa tal de vida começaria.

    “Será que minha vida começou e eu nem percebi?”, perguntou-se Clara, sentada dentro do carro parado no estacionamento da faculdade, com um envelope branco, ainda perfeitamente lacrado na mão. Abriu o envelope. Positivo, dizia o exame.

    Pela primeira vez em toda sua vida, sentiu-se absolutamente solitária. Naquele momento, nenhuma outra pessoa no mundo poderia entender o que ela estava sentindo, muito menos poderia ajuda-la. Não importa o que as outras pessoas dissessem, seria ela, ninguém mais, a tomar a decisão.

    Começou por analisar todas as consequências do que acabara de descobrir. Antes de mais nada teria que contar aos pais, e em seguida, ao namorado. Nenhum dos três ficaria feliz com a novidade, e certamente apontariam para a mesma solução. E então Clara continuaria a sentir-se só.

    Não achava justo ter que tomar essa decisão tão jovem. Mas sabia que se não fosse capaz de decidir sozinha, jamais seria capaz de dar à luz e criar a criança em que se transformaria o embrião que trazia em seu útero.

    Se realmente decidisse prosseguir com a gravidez e ter um filho, teria que largar a faculdade por pelo menos um ano, abandonar o grupo de ballet do qual fazia parte, e abrir mão da vaga de estágio pela qual estava lutando naqueles dias. Não parece tanta coisa, mas pensando no longo prazo, era todo um projeto de vida a ser jogado para o alto.

    Por outro lado, sussurrar a palavra aborto lhe dava calafrios. Não conseguia de maneira alguma pronunciar tal palavra em voz alta, quanto mais imaginar-se deitada em uma maca de hospital, tendo uma vida arrancada de dentro de seu corpo. Um pedaço de si mesma que seria extirpado, como se fosse uma verruga ou uma amígdala, que não servem para nada.

    Sentada naquele carro, com um envelope branco na mão, uma lágrima solitária a escorrer pelo seu nariz e tendo que optar entre um projeto de vida e um pedaço de seu corpo, Clara só tinha uma certeza: sem que conseguisse perceber quando, sua vida já tinha começado.





    Terça-feira, 07 de dezembro de 2004


    A garota do outdoor


    “Puta que pariu”. Foram essas as primeiras palavras de Vanessa em solo mexicano, seguidas de um longo silêncio.

    Logo que saiu do aeroporto, e antes mesmo de chegar ao ponto de táxi, avistou o outdoor do outro lado da rua. “Sin Solitud Café, las chicas más calientes de Mexico”. Não havia dúvida, era ela a “chica caliente” do outdoor.

    Cinco segundos foi tempo mais que suficiente para que ela se recordasse e se arrependesse amargamente do dia em que concordou em tirar aquelas fotos. Entre todos motivos considerados quando da decisão de posar para tais fotos, jamais passou por sua cabeça que, oito anos mais tarde, seu rosto e seu corpo poderiam estar estampados em um outdoor de puteiro mexicano. Mas estavam.

    Saber como aquela foto (tirada em Porto Alegre durante uma aula do curso de comunicação no dia 24 de setembro de 1996) podia estar estampada em um outdoor em frente ao aeroporto da Cidade do México no dia 12 de novembro de 2004 já não estava entre as maiores preocupações de Vanessa naquele momento, apesar de o questionamento “como?” cruzar seus pensamentos de quando em quando.

    O que realmente a preocupava era a reação do motorista de táxi que a levaria até o hotel, do recepcionista do hotel, do carregador de malas do hotel, e mais importante, do presidente da empresa multinacional que Vanessa visitaria naqueles dias, e para a qual pretendia trabalhar caso fosse aprovada na entrevista. De repente lhe pareceu que essa aprovação ficara mais difícil que o imaginado.

    Como sua passagem de volta estava marcada para a próxima semana, não encontrou outra alternativa a não ser pegar um táxi. O motorista, preocupado demais em garantir sua gorjeta para perceber que a passageira e a chica do outdoor eram a mesma pessoa, ajeitou cuidadosamente a pouca bagagem no porta-malas, subiu em seu táxi e deu início à oitava corrida do dia.

    Foi grande a surpresa de Vanessa ao contar 23 outdoors do “Sin Solitud Café” pelos 16 quilometros entre o aeroporto e Chapultepec, o bairro mais nobre da cidade. Maior ainda foi seu alívio ao chegar ao hotel sem ter ouvido sequer um comentário do taxista a esse respeito.

    Fez o check-in na recepção, subiu para um banho rápido e preferiu jantar no quarto. Não saiu naquele dia nem no dia seguinte, mas não podia evitar a entrevista, afinal de contas tinha ido ao México para arranjar um emprego e não para passar uma semana dentro do quarto do hotel.

    Mesmo em pânico, foi à entrevista. Nem o taxista, nem a recepcionista e nem o seu futuro chefe fizeram comentários sobre sua semelhança com a “chica más caliente de Mexico”. Talvez eles não tivessem mesmo reparado. Ou talvez todos a vissem como uma puta. E ninguém quer intimidades com uma.

    Apesar do nervosismo, tentou esquecer o outdoor e se concentrar na entrevista. Por mais que aparentasse tranquilidade, como teve que aprender para se manter na profissão, internamente estava desesperada. Esperava ouvir a qualquer momento a condenação de seu entrevistador. “Aqui não contratamos prostitutas”, diria ele secamente.

    Não disse. Vanessa conseguiu o emprego e nessa noite saiu para comemorar, enchendo a barriga de tacos, a cabeça de tequila e os ouvidos de canções de mariachis. Pela primeira vez desde que chegara ao Mexico, sentiu-se um tanto quanto ofendida por não ser reconhecida. Afinal de contas, era ela a “chica más caliente” do país. Ou será que sua beleza havia sido consumida pelos 8 anos que a separavam da garota da foto? Todo o pânico que havia sentido naqueles dias transformou-se em raiva e insegurança.

    No caminho de volta para o hotel, com a razão turvada pelo álcool, perguntou ao taxista se não a reconhecia como a garota do outdoor.

    “Pero ella es solamente una chica jovencita. Tu eres mujer.”

    Foi então que Vanessa compreendeu que realmente não era a menina do outdoor, e que jamais voltaria a sê-lo. E, ao contrário do que imaginava, sentiu-se feliz ao perceber que havia envelhecido.


    Terça-feira, 30 de novembro de 2004


    O contador de cachorros


    De todos os vícios conhecidos e catalogados, o de Leandro, se não era o mais estranho, não deixava de ser incomum. Nada de álcool, cigarro ou drogas. Muito menos colecionar selos ou fazer bolinhas de catota de nariz. Leandro gostava mesmo era de contar cachorros.

    Leandro começou cedo, assim como todos os viciados profissionais. Foi aos onze anos, numa noite de quarta-feira. Era um dia 13 de outubro, e assim sendo, apenas três dias antes de seu décimo segundo aniversário. E foi justamente nesse ano que Leandrinho, como era chamado pelos pais, decidiu que queria ganhar um cachorrinho de presente.

    Muitos eram os motivos que impediam Leandro de ter um cachorro. O maior deles era morar em apartamento, sítio já pouco indicado para moradia de seres humanos, quem dirá de animais de estimação. E por essa principal razão, os pais de Leandro negaram veementemente o pedido. A cena se deu dentro do carro, quando quase desistindo de insistir, o mancebo teve a genial idéia de contar todos os cachorrinhos que botasse os olhos, só para irritar os pais. Olha lá um. Ih, olha aquele outro, dois. Tem um marrom perto da lixeira, três. E por aí afora.

    O que ele não imaginou e nem poderia imaginar naquele momento, do alto da sabedoria de um pré-adolescente vivendo a fronteira dos onze para os doze anos, é que isso iria se transformar em um vício incurável que o seguiria por toda sua vida. E só naquele primeiro dia, logo depois de ter concebido a estratégia, no caminho de volta do supermercado, contou treze cães. Seus pais não se deram por vencidos, e apesar da chateação que era ouvir o filho contar cachorros por todos os lados, mantiveram a proibição.

    Com o passar do tempo, decidiu aprimorar sua contagem. Passou a catalogar por raças, cores e sexo. Se eram adultos ou filhotes. Criou sub-categorias para vira-latas, cães policiais. Separou os livres dos encoleirados e os reprodutivos dos castrados. Fosse bibliotecário, seria um funcionário exemplar. Mas como decidiu ser arquiteto quando da chegada do vestibular, sua mania não adquiriu contornos práticos.

    Aos vinte e três anos, quando finalmente se mudou da casa dos pais, estava livre para ter o tão sonhado cachorrinho. Mas achou melhor deixar pra lá, já que perderia muito tempo cuidando de um animal que só poderia contar uma vez. Melhor guardar seu tempo livre pra contar outros cães que não o seu.

    Seu programa favorito nos fins de semana era viajar para o interior. Pegava o carro e ia em direção ao campo, contando cachorros na estrada (inclusive os atropelados, que já tinham categoria própria) até se decidir por uma cidade qualquer. Itu, Sorocaba, São José dos Campos, Jundiaí, Registro. Leandro rodou o interior paulista contando, registrando e catalogando todos os cães que cruzassem seu caminho.

    Durante as férias podia fazer viagens mais longas. Natal, Recife, Campo Grande, Brasília e Florianópolis. Contou cachorros no carnaval de Salvador e no desfile dos blocos de Paritins. Visitou Paris, Londres, Miami e Havana, e voltava sempre satisfeito, com um caderninho de notas que não mostrava a ninguém, mas que todos sabiam que iria alimentar o já enorme banco de dados em seu computador.

    O grande erro de Leandro foi a ir à Ásia. Não teve problemas em Tóquio nem Osaka, onde contou cachorros tranquilamente, apesar do fuso-horário e do idioma estranho. Seul não tinha nada demais, mas Pequim foi sua ruína. Ao sair de um jantar, perguntou ao guia o que era o prato tão saboroso que havia degustado. Ao ouvir a resposta, não teve dúvidas. Daquele dia em diante, não contaria mais nenhum cachorro.

    Poucos meses depois, caiu doente e faleceu. De câncer, dizem os maldosos. De desgosto, dizem os mais chegados. E pelo que se comentou em seu velório, ninguém nunca soube dizer quantos cachorros ele contou em sua vida.